O transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento, caracterizado por déficit principalmente na interação social e na comunicação, assim como interesses restritos e padrões repetitivos. Quanto a etiologia, são múltiplas as causas, como há comorbidades com outros distúrbios. Observa-se que vem aumentando muito a proporção de pessoas diagnósticas com o autismo, o que em breve poderá se tornar um problema de saúde pública. De acordo com o JAMA Pediatrics, em 2022 a prevalência de autismo nos Estados Unidos é de uma criança para cada 30 nascidas com vida. No Brasil, estima-se que existem dois milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Teoricamente há explicações que apontam para causas orgânicas e mesmo outras que atribuem às causas de caráter psíquico. Já é confirmado por estudos, que a genética e fatores ambientais, como complicações no parto ou no período neonatal, desempenham um papel chave nas causas do transtorno.
As crianças que apresentam os sintomas mais severos são facilmente diagnosticadas, porém muitas outras possuem apenas alguns traços do espectro, o que torna o diagnóstico mais difícil. Pensar em diagnostico é pensar em uma equipe multidisciplinar preparada para avaliar e intervir o quanto antes, por isso a importância desse diagnostico ser feito logo na primeira infância. Uma intervenção precoce, dará a esses indivíduos chances de aprender habilidades que lhe permitirão ser mais autônomos e independentes ao longo da vida.
Os profissionais precisam estar atentos para dar um diagnóstico o mais cedo possível, de tal forma que possam orientar e encaminhar para as abordagens que cada caso necessita e como isso evitar o abismo que poderá ocorrer no processo de inclusão em todos os espaços sociais. Os atos humanos são interpretados e julgados como corretos ou incorretos em função de um sistema de valores, da moral e da justiça estabelecidos mediante dispositivos institucionais e por costumes de um grupo social. Conhecer melhor as questões relativas às pessoas com autismo, ajudará na quebra de paradigmas que promovem a exclusão dessas pessoas. Proteger e promover os valores de pessoas com autismo, é um dever de todos.
Um olhar bioético sobre a questão
Um dos grandes pilares da bioética é estudar as questões de vulnerabilidade. Como uma disciplina ética, ela analisa o comportamento humano diante de casos concretos e orienta por meio de seus fundamentos que comportamentos devem ser adotados para a proteção da dignidade da pessoa humana. O diagnóstico de TEA levanta inúmeras questões bioéticas para indivíduos e para a sociedade.
Ao fazer uma análise bioética, podemos identificar alguns aspectos que ainda não estão sendo observados e abordados da forma adequada. Uma criança quando não diagnosticada no tempo certo, que deve ocorrer até os 3 anos de idade de preferência, perde a janela de oportunidade muito importante de receber a abordagem terapêutica considerada como padrão ouro, que vai desde o diagnóstico até as diversas terapias cognitivas e comportamentais. Passada essa fase, as dificuldades aumentam, tanto nas terapias quanto no comportamento individual. Muitos pais não sabem que determinadas características no âmbito comportamental e social podem ser um sinal de alerta para se buscar um profissional.
Por outro lado, nem sempre há serviços especializados com profissionais devidamente qualificados, o que também prejudica a um bom tratamento. Cada vez mais surgem serviços de atendimentos para essas pessoas, mas nem sempre com adequados para as abordagens terapêuticas e cientificamente comprovada, o que pode ser danoso ao paciente, onde ele recebe uma abordagem terapêutica que se espera atingir determinados fins mas que na realidade é uma proposta que não conseguirá promover a melhora da criança. Tal prática pode ser questionada e até mesmo responsabilizados tais serviços por perda de uma chance e isso vai impactar definitivamente na vida dessas pessoas e de suas famílias.
Se o sistema de saúde pública e parte do privado, não estão preparados para atender essa demanda crescente, o que dizer das escolas? Promover a verdadeira inclusão em nosso país é algo ainda muito distante. Mesmo com todas as leis e normativas voltadas ao público autista e deficientes em geral, ainda não conseguimos em nossas escolas ter uma equipe preparada para incluir, adaptar, e dar oportunidades para que todos sem exceção aprendam.
Existem diversas leis que protege o direito de pessoas com Autismo, mas a luta das famílias para acessar esses direitos é quase inglória. Muitas das buscas de tratamento, terapias e acompanhamentos passas pelos tribunais que apesar de já haver um certo consenso de que trata-se de um rol exemplificativo a assistência ao paciente autista, vai depender do entendimento do julgado se a pessoa com TEA vai receber todo ou parcialmente o tratamento necessário.
Estamos enquanto sociedade ajudando a construir uma sociedade de pessoas de “segunda categoria” pois essas pessoas terão muita dificuldade de serem inseridas em uma sociedade que não sabe respeitar os “diferentes”. Essas pessoas vão precisar de políticas inclusivas afetas a um legislativo que nem sempre sinaliza para os interesses dos vulneráveis.
Não podemos enquanto sociedade dita civilizada, permitir que o Autismo seja uma condição despercebida no nosso meio, que só atinge a família e o autista. Essa condição afeta a todos e é de responsabilidade do estado e da sociedade civil organizada se mobilizar para defender os direitos de pessoas com TEA, promover à cidadania e proteger os valores dessas pessoas. O Autismo não é uma doença e sim uma condição neurológica. O autismo não faz com que a pessoa deixe de ter sentimentos, mas pode fazer com que ela tenha dificuldade para se expressar, de convivência no trabalho, mas não em habilidades. O universo autista é o mesmo de todas as pessoas, porém, como eles sentem e interagem de uma forma diferente, devido à sensibilidade alterada, muitas vezes se isolam socialmente, dando essa impressão de viver em outro mundo. Proteger a autonomia de uma pessoa com autismo é ajudar ela a ter liberdade para fazer suas escolhas.
Considerações finais
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (Unesco, 2005) cita: “Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer autonomia.” São os adultos, pais, professores, profissionais da saúde, juízes, entre outros, quem conhecem as necessidades de crianças com autismo e, portanto, tem um papel fundamental em proteger de violências muitas vezes sutis como manipulação e dominação, relação hierárquica assimétrica por parte dos adultos, decidindo sobre a vida e os projetos convertendo-os em objeto de intervenção profissional, institucional e de políticas sociais e judiciárias. O biopoder tem rachaduras através das quais as forças vitais conseguem infiltrar e reagir.
Bibliografia
https://tismoo.us/ciencia/estudo-aponta-aumento-da-prevalencia-de-autismo-nos-eua-para-1-em-30/
MARTORELL, Gabriella; PAPALIA, Diane E; FELDMAN, Ruth D. O mundo da criança: da infância à adolescência. Ed.13. Porto Alegre: AMGH, 2020.
ROTTA, Newra Tellechea; OHLWEILER, Lygia; RIESGO, R dos Santos :Transtornos da aprendizagem: abordagem neurobiologic e multidisciplinar. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2016.
Autores
Josimário Silva – Pós Doutor em Bioética
Dayse Cruz – Psicopedagoga Clínica e Institucional
*Josimário Silva é Coordenador da Rede Bioética Brasil.