De assunto puramente de especialistas, o tema da inteligência artificial passou a ocupar e preocupar a opinião pública, a ponto de se tornar um dos assuntos mais surpreendentes e preocupantes do nosso tempo. A surpresa do fenômeno deu origem a todo tipo de especulação sobre o que pode acontecer no futuro próximo.
Na verdade, colocou em guarda as principais instituições internacionais, que começaram a considerar como controlar este fenômeno novo e revolucionário, preocupadas em não atrasar a sua necessária regulação e controle. O que parece não haver dúvidas é que a IA promete ser uma das maiores revoluções técnicas que ocorreram em toda a história da humanidade, e que vai transformar profundamente a vida da nossa sociedade.
Se assim for, a reflexão sobre o assunto é bastante razoável para pensar que nos ocupará de forma cada vez mais intensa ao longo dos próximos anos, talvez décadas.
Neste início do processo, a primeira pergunta que deve ser feita é aquela referente ao que os escolásticos chamavam de quid nominis. (essência nominal de uma coisa)
A expressão inteligência artificial está correta? O que isso significa exatamente? Sabemos exatamente do que estamos falando? A palavra inteligência vem da raiz latina lego que significa ler, então originalmente inteligência tem o significado de “ler” ou “capturar a essência ou realidade” de algo.
Na filosofia antiga, isso acontecia através do processo mental de abstração da chamada forma em relação à matéria, de tal maneira que compreender algo era apreender com a mente o que é, o que os filósofos gregos chamavam de forma, abstraindo isso do assunto.
Ao dizer que algo é uma cadeira, o material da cadeira não entra na nossa mente, mas sim a sua forma, o que nos faz dizer que se trata de uma cadeira e não de qualquer outro objeto. Essa captura da forma, que passa a ser identificada com a essência das coisas, neste caso da cadeira, é o que expressamos, atribuindo-lhe um nome, cadeira. A linguagem é, portanto, a expressão desse essencial formal das coisas.
Os gregos usaram uma palavra, lógos, para designar este fenômeno surpreendente e, portanto, esse termo significa em grego tanto razão ou intelecção quanto palavra. E Aristóteles definiu o ser humano, ao contrário dos demais seres vivos, como o animal dotado de logos, isto é, de razão e de fala, que o distingue de todos os outros animais.
Esta é a definição de inteligência que circulou ao longo da história da cultura ocidental, até há relativamente pouco tempo, quando a ciência que trata do estudo do comportamento animal, a etiologia, começou a falar em “inteligência animal”, algo incompreensível em todas as tradições anteriores.. Muito mais recente é a expressão “inteligência artificial”, nascida com o surgimento da computação no último meio século.
E surge a pergunta: é possível falar de inteligência em relação às máquinas? As máquinas são inteligentes? De acordo com a definição grega de inteligência, obviamente não. As máquinas, pelo menos por enquanto, não são capazes de realizar o processo de abstração de que falavam os antigos filósofos, nem de apreender as coisas como realidades.
A sua grande capacidade está no processamento e gestão da informação, de tal forma que as máquinas são inteligentes se por inteligência entendemos, como é habitual hoje, a capacidade de processar informação. Neste sentido amplo e muito amplo do termo, não há dúvida de que os computadores são inteligentes, e os animais também. Além do mais, aos poucos vamos assumindo o fato de que, com a inteligência assim definida, os animais, e especialmente as máquinas, são em certos tipos de funções mais inteligentes do que os próprios seres humanos.
Mas surge imediatamente a objeção de que as máquinas não têm consciência do que fazem, nem podem, portanto, ser responsáveis pelas suas ações. Tanto dos animais como sobretudo deles, a ética nos separa, entre outras características. Não parece que as máquinas tenham consciência do dever. Eles conseguirão adquiri-lo em algum momento? Não sabemos, mas também não podemos descartar completamente essa possibilidade.
Na natureza, os saltos da quantidade para a qualidade são contínuos, de tal forma que da complexidade das estruturas materiais acabam por emergir propriedades não só novas, mas qualitativamente diferentes das anteriores e a elas irredutíveis. É a teoria conhecida como “emergentismo”. Sem ela é impossível compreender a evolução dos seres vivos, em que os saltos da quantidade para a qualidade parecem ter sido muitos.
Será que um dia as máquinas se tornarão inteligentes, não no sentido amplo e atual do termo, o da capacidade de processar informação, mas no sentido de terem consciência do que fazem? Esse salto pode ser dado? Nós não sabemos.
O que sabemos é que por enquanto esse salto não foi dado e que, mesmo neste momento de euforia e otimismo em relação aos resultados da inteligência artificial, o momento parece distante. Mas também não pode ser descartado.